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sete dias como a seven days diet. como a vela de sete dias.

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cada dia uma coisa
terça-feira, junho 22, 2004

BLOCKBUSTERS AMIGOS DA VIZINHANÇA

Todos aqui sabem que estão intimados a comparecer aos multiplexes daqui a menos de 15 dias. É dever cívico. Homem-Aranha 2, sabe como é. Né qualquer merda não. E por isso, vamos falar hoje dessa moda. Já foi um dos maiores bichos-papões da cultura pop e agora fazem milagre nas bilheterias e rendem megaelogios nas bocas dos críticos mais cabulosos. Adaptações HQ-cinema, mais especificamente HQs de super-heróis.

.......

Nem sei por onde começar. Eu não queria, mas acho que vai ter que ser do começo mesmo. Então lá vai uma aula fast-food do titio Márcio...

Anos 30: para aproveitar o boom dos super-heróis recém-nascidos nos quadrinhos, surgem no cinema séries de curtas-metragens com Super-Homem, Batman & Robin e Capitão Marvel (aquele do Shazam!). Os enredos eram bem bobos e ruins, mas a idéia rendeu algum sucesso. Anos 60: O produtor William Dozier lança a série de TV Batman, que chamou a atenção pelo tom pastelão e uso quase literal de elementos HQ, como cores fortes e onomatopéias. Anos 70: Nasce o primeiro longa-metragem de cinema "sério" sobre um personagem de quadrinhos: Superman, de Richard Donner. Homem-Aranha e Hulk estrelam suas próprias séries de TV. Anos 80: a cinessérie Superman continua, mas caindo de nível. Mais adaptações surgem, como Rocketeer, Howard o Pato e Batman - este último em produção milionária e que rendeu mais três filmes nos... Anos 90: Hollywood aumenta a produção de filmes de quadrinhos em ritmo desordenado, indo dos ótimos O Corvo e O Máskara a tosqueiras como Spawn, Tank Girl e o abominável Batman e Robin, também conhecido como a pior superprodução de todos os tempos. O fiasco foi o suficiente para abaixar o fogo dos estúdios e planejar a estratégia ideal para que esse gênero chegasse, enfim, à tão sonhada aprovação de público, crítica e fãs de HQ.

Terei errado?

No parágrafo anterior, notem que nas primeiras tentativas de adaptações, o principal erro foi não levar a sério a fonte original (Batman barrigudo e infame?). Isso gera revolta em quem já acompanhava os gibis e esperava algo no mesmo calibre. Aí na contramão da coisa, surgiu o problema oposto: fidelidade extrema demais. É o caso de Spawn, que por ter tido supervisão direta de Todd McFarlane (o criador do personagem), era esperado com grande entusiasmo pelos fãs. Mas se revelou um filme fraco justamente por mostrar os mesmos excessos visuais que funcionam bem no gibi, mas que na tela ficam toscos e cafonas.

Outro problema é quando o diretor do filme quer aparecer mais que o personagem. O caso mais representativo é o dos quatro Batman. Tim Burton é fã de quadrinhos, fã do Batman e cineasta dos bons. Ok. Aí deram a ele a direção de dois filmes sobre Batman. Ok. O resultado, entretanto, dividiu todo mundo. Embora sejam filmes excelentes, Burton não resistiu ao ego e impôs demais o seu estilo pessoal, gerando um excesso aqui e ali de "liberdade criativa". Aí veio Joel Schumacher, diretor mais moldado na escola quadrada de filmões americanos. O que dizer dos dois batfilmes desse cara? Ele não só cometeu o mesmo erro do antecessor, como DISTORCEU todos os conceitos-chave do personagem. Batman virou a faceta dark-kitsch-gay de Schumacher, de mamilos e orelhas pontudas e... bem, não vamos revirar mais ainda a merda.

Ainda nos anos 90, a Marvel arquitetava nos bastidores o lançamento cinematográfico de seus maiores ícones: o Homem-Aranha e os X-Men. Os dois projetos tiveram um desenrolar bastante atribulado. James "Titanic" Cameron, fã declarado de quadrinhos, queria muito ser o diretor das empreitadas, mas quando descobriu-se que ele mais um do time "pretendo-trazer-minha-visão-pessoal" (leia-se: Leonardo diCaprio no papel de Peter Parker e recriar Mary Jane como uma garota interesseira e deprimida), os produtores sabiamente o descartaram.

O X da questão

Alguns críticos dizem que Blade (1998), baseado em um personagem de segunda linha da Marvel, foi o pontapé inicial da nova safra de filmes HQ. Mas eudiscordo, porque apesar da boa bilheteria, Blade obteve muito pouca atenção para se tornar relevante nesse fenômeno. Portanto, pulemos para o ano 2000 e os motivos que fizeram de X-Men o verdadeiro dono desse posto.

Ainda lembro na época que eu acompanhava o andamento da produção pela Internet e cada novidade era motivo de arrepios por parte dos fãs. Bryan Singer confirmado como diretor, assumindo que nunca gostou muito de quadrinhos até então. Hugh Jackman, um desconhecido australiano, confirmado como Wolverine. Ian McKellen seria Magneto; aparentemente velho demais para o papel. Orçamento apertadíssimo de US$ 70 milhões. No lugar dos uniformes clássicos, colants pretos (Matrix cover??).

Tinha quase tudo pra dar errado. Mas como assim, não deu errado? Arrecadou quase US$ 60 milhões só nos três primeiros dias de exbição. Fãs gostaram. Não-fãs também. Que milagre teria ocorrido?

Antes de tudo, Singer estava preocupado em pegar o material e fazer dele um bom filme, sem nenhum tipo de intromissão autoral. Óbvio, não? E esperto que é, o diretor de Os Suspeitos se meteu o mínimo possível no roteiro e conteúdo. Deixou mais essa parte com seu braço direito: o produtor Tom DeSanto, esse sim um nerd PhD em X-Men. Não esquecer ainda do produtor executivo Avi Arad, principal responsável pelas adaptações de personagens Marvel para o cinema desde então e profundo conhecedor deste universo. Enfim, o lance é ter por perto gente que entende de quadrinho e de cinema também, mas tem o bom senso de saber onde e quando pôr os pingos nos is.

E afinal, como eles chegaram ao resultado da equação "ser fiel demais ou de menos à fonte?" Resposta: nenhum dos dois. Equilíbrio é a chave. Pega-se as diretrizes gerais do gibi, escala-se os personagens indispensáveis, escreve-se um roteiro que traga situações reconhecíveis para os leitores e verossímeis para os leigos, coloca-se efeitos e cenas de ação que funcionem como complemento da história e não atrações à parte... e pronto, todos ficarão felizes. A cereja do bolo serão as referências aqui e ali. Por exemplo, uma menina chamada Kitty atravessando rapidamente a parede é nada mais que um recado subliminar aos fãs ortodoxos: "Sabemos que existe a Lince Negra, que ela é um personagem importante, mas por falta de tempo e espaço ela só pôde ter essa aparição. Contamos com a compreensão de vocês e esperamos que tenham gostado".

Assim como nos quadrinhos, os queridos mutantes revolucionaram mais uma vez. X-Men trouxe novos paradigmas para qualquer cineasta que dali por diante quisesse adaptar quadrinhos. É bem verdade que não foi 100% perfeito nem como filme nem como adaptação. Entretanto, dadas as circusntâncias, o filme passou no teste e conseguiu corrigir a maioria dos defeitos três anos depois, em X-Men 2.

A Marvel seguiu levando seus personagens às telas. Em 2002, Homem-Aranha bate mais recordes e mostra uma qualidade estupenda enquanto adaptação HQ, seguindo direitinho a cartilha de X-Men mais os méritos do diretor-fanboy Sam Raimi. No ano passado, Ang Lee cai na perigosa tentação de trazer pro roteiro de Hulk um complexo embate de pai contra filho. Resultou num filme inovador, corajoso e ótimo, mas desapontou a indústria na bilheteria. Demolidor e Liga Extraordinária revivem clichês antigos dos filmes-HQ e são grandes decepções. Atualmente a Marvel e a DC estão lotadas de futuros projetos, indo do bem intencionado Batman Begins (Chris Nolan de Amnésia na direção) aos altamente suspeitos Mulher-Gato (Halle Berry em uniforme fuckin' bitch) e o demoradíssimo quinto filme do Super-Homem (esse virou uma novela com tantos capítulos que tenho até medo de enumerar...).

Pode ser só uma moda. Daqui a pouco deve passar e os engravatados deixarão os quadrinhos em paz novamente. No bom e velho papel-jornal a vida continua, o Aranha continua salvando o dia e Mary Jane Watson continua linda.

*****

O texto acima foi a minha semi-despedida. É despedida porque desde que os demais autores do Sete Dias relaxaram, eu venho perdendo a vontade de vir no blog, acompanhar as discussões, etc. Não estou à vontade no posto de único colunista regular, além de estar cada vez mais preguiçoso. É semi porque posso - e quero - voltar assim que os outros tomarem uma atitude e beber Dan Up. E vocês, leitores, reivindiquem isso nos comentários. Como eu já disse antes, tenho muito assunto sobre quadrinhos para soltar aqui, e acredito que os outros seis redatores também devam ter em seus setores.

Até logo.

MPadrão @ 8:14 AM

terça-feira, junho 15, 2004

"Não é assim que gente normal devia ser!"

Senhoras e senhores, esta é Jessica Jones.

Mora em Nova York. É uma pessoa comum. Quer dizer, quase comum. Ela é dona e única funcionária de um serviço particular de investigação. Segue pessoas para saber se estas estão traindo seus cônjuges, procura gente desaparecida, coisa e tal. O que mais vocês precisam saber? Bem, ela tem superpoderes - que eu ainda não sei direito quais são - e é uma tremenda loser.

Jessica é a protagonista da série Alias, publicada nos Estados Unidos pela Marvel e editada no Brasil pela Panini, na revista Marvel Max. Alias é também o meu título mensal de quadrinhos preferido atualmente. E o resto deste texto vai tentar explicar porque eu gasto R$ 4,90 todo mês para ler essa revista.

A Marvel Max é um mix de titúlos lançados pelo selo Max, uma subdivisão da Marvel dedicada a "quadrinhos adultos". As aspas se devem ao fato de que o conteúdo dessas histórias é marqueteado dessa forma apenas porque apresenta teor sexual, violência e palavrões, como se isso significasse "ser adulto". E de certa forma, tudo isso já tem na linha de super-heróis da Marvel; mais maquiado, mas tem. Enfim, a julgar pela baixa qualidade da maioria dos lançamentos Max, o selo ainda tem muito chão pela frente para amadurecer a proposta e se tornar adulto sem aspas. Isso supondo que seja essa a intenção.

No entanto, Alias é até agora o título que mais se sobressai, graças aos diálogos muito bem amarrados de Brian Michael Bendis, um dos roteiristas mais hypados da atualidade. Mas o cara é bom mesmo, já foi premiado no Eisner Awards e pá. Outro bom motivo é a personagem. Jessica já entrou no meu time de losers carismáticas. É insegura pra caralho, solitária, não sabe o que quer da vida. Cada caso que ela aceita acaba se tornando também um tipo de jornada interior, onde compartilha com o leitor quais são os motivos reais dela estar fazendo aquilo. Isso é artifício básico da literatura noir, eu sei, mas é a primeira vez que alguém da Marvel faz isso de forma tão instigante.

Pelo muito pouco que foi dito do passado de Jessica, dá-se a entender que teve uma passagem curta pelos Vingadores, mas que faz toda a questão de esconder. Por quê? Talvez porque ela abomine o uniforme que usava, e nunca se sentiu à vontade na pompa da "classe social" dos super-heróis. Para se ter uma idéia, na edição de estréia Jessica transa com Luke Cage, um dosheróis mais decadentes do universo Marvel, apenas porque "queria sentir alguma coisa". Ou quando ela tenta fazer contato com o Quarteto Fantástico; a ligação cai num call center altamente burocrático, e Jessica apenas lamenta e solta algo do tipo: "é, eles devem estar ocupados demais salvando o mundo". É por aí: superseres são que nem celebridades. Aparecem demais na mídia, mas até que ponto realmente ajudam as pessoas?

Alias é isso: mistura tragicomédia, drama intimista e clima policial investigativo, analisa outros elementos dos clichês super-heroícos, tem diálogos rápidos (já falei isso, né?) e é arretado. Pra quem se interessar, a próxima edição da Marvel Max (10) inicia um arco novo de histórias. Uma boa chance de começar.

MPadrão @ 9:03 AM

terça-feira, junho 08, 2004

A Soma de Tudo

Eu ando escrevendo demais aqui na coluna basicamente porque adoro o assunto e descobri que tenho muita coisa a dizer sobre. Como agora o papo é semanal, é preferível eu começar a me controlar, pra que tanto eu quanto vocês não começem a achar tudo meio maçante. Hoje eu vou tentar (tentar!) escrever menos.

A pauta de hoje é a sexta edição do Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco.

Quem me conhece sabe o quanto eu acho importante a existência de um evento desses aqui no Estado. São raras as oportunidades que leitores e profissionais de HQ têm para debater e conversar; não só em Pernambuco, mas no Brasil inteiro. Outros salões de humor e quadrinhos parecidos com ele são o de Piracicaba (o maior do País), o do Piauí, o de Volta Redonda e o de Belo Horizonte. Só. Há outros eventos, mas possuem outro perfil (tipo feiras de quadrinhos) e/ou são mais sazonais.

Voltando a Pernambuco, é importantíssimo destacar que o festival é sempre muito bem produzido. Boas palestras, mostras interessantes, programação diversificada e o mais importante: convidados nacionais e internacionais de peso. Meus caros, este festival trouxe há três anos Will Eisner ao Recife! Sabem o que isso significa? Imaginem Bob Dylan ou Orson Welles no Recife. Pronto, é a mesma coisa, só que nos quadrinhos. Tivemos ainda Jerry Robinson (co-criador do Coringa), o Los Tres Amigos (Angeli, Glauco, Laerte e Adão) e outros menos populares, mas com trabalhos bem legais. Já veio gente de Portugal, Eslováquia, Espanha, Japão... O festival tem lá suas pequenas falhas, mas a dedicação com que é feito traz muitos benefícios que se elevam aos problemas.

Vamos então ao FIHQ-PE deste ano. Primeiro, sobre a mostra de trabalhos. São quatro categorias: quadrinhos, charges, cartuns e caricaturas. Nos últimos três anos, eu noto que a de caricaturas é sempre a que tem os melhores trabalhos, as de charges e cartuns na média, e a de quadrinhos é a pior exposição. Na minha opinião, isso tem muito a ver com a tradição do Brasil em humor feito para atender à demanda de imprensa e a já conhecida dificuldade de fomentar bons roteiristas no Brasil. Na mostra de quadrinhos, roteiro é vital. E o que vemos lá são - a maioria, não todos, ok? - pastiches de histórias de terror, super-heróis e HQ "adulta", com umas abobrinhas poéticas pretensamente inspiradas em Neil Gaiman. Eu também às vezes discordo dos trabalhos premiados, mas isso não importa muito. O legal de ver os selecionados também é esse: cada um "escolhe" os seus eleitos, como eu quase sempre faço.

As mostras especiais de homenagem têm uma função essencial: formar culturalmente os espectadores, porque elas trazem textos que contextualizam o assunto pros leigos. Ano passado, houve a mostra de ilustradores pernambucanos, que explicou a tradição do Estado na área. Neste ano, houve a apresentação daquela que é considerada a primeira charge do Brasil, que saiu em um jornal de Pernambuco. Muito interessante, historicamente falando. As demais mostras fizeram uma retrospectiva dos trabalhos de Samuel Casal, Cláudio Oliveira, Lourenço Mutarelli e Don Rosa, todos convidados do festival. Dos dois últimos, falo mais embaixo.

Os dois convidados internacionais foram o norte-americano Keno Don Rosa, o mais prestigiado artista de HQs Disney da atualidade; e a francesa Edith Grattery, que produz álbuns infantis. Do Don Rosa, não tenho muito a falar, pois aconteceram umas coisas que prefiro não comentar aqui. Mas valeu pelo fato de ter mostrado uma parte da história que ele está produzindo com Donald e Zé Carioca no Brasil. Já Edith é tímida porém simpática, parece Chrissie Hynde (vocalista do Pretenders) e mostrou uns originais dela. As pinturas dela são vivas, bonitas. Pena que ela não tem nada publicado no Brasil.

O melhor ficou pro final: as dicas de roteiro de Lourenço Mutarelli (convenhamos, não dá mesmo pra chamar de "oficina de roteiro" uma série de três encontros). É o seguinte: é a primeira vez que participo de uma oficina do festival. Fui pra essa daí só com a informação de que este é um dos melhores autores de quadrinhos do Brasil atualmente. Mas nunca li nenhuma história dele, embora já esteja na minha lista de intenções há bastante tempo. Bom, pra resumir... a coisa não ficou só nas dicas de roteiro: contou muitas histórias da vida e trabalho dele, jogou conversa fora e leu alguns contos e roteiros dos presentes, inclusive alguns contos meus (e elogiou!). O cara foi de uma simpatia e paciência sem tamanho. Foi talvez o melhor tipo de contato que eu já tive com um convidado do festival, em todos esses anos.

Tem isso no nosso festival de quadrinhos, a proximidade entre público e convidados. Encontrar pessoas que você admira - ou conhece de nome, ou nem conhece - e ver como é o trabalho delas e como elas são na real. Querem tirar a prova? Ainda tá rolando: vai ter nesta semana outra oficina, a de Samuel Casal. Vão lá, conheçam ele (eu não conheço), vejam as mostras e comprem umas revistas. Faz bem.

E mais uma vez, escrevi muito. Vocês me perdoam?

MPadrão @ 3:36 PM

sexta-feira, junho 04, 2004

Por motivos técnicos, não haverá coluna hoje (já não houve, aliás).

Fábio Leal @ 11:51 PM

quinta-feira, junho 03, 2004

O dia que fiz o louquinho chorar

É impressionante a quantidade de figuras maluquinhas que as cidades do interior concentram. Dos dois lugares que morei, a quantidade de loucos de praça era suficiente para ter história pra contar: Renato Jacaré, Corinthiano, o Tarado da Cônego, Maria Louca, Zé do Cobertor, o Drogado etc.. E eu, pobre eu, acho que exalo um cheiro que atrai todos eles, causando situações chatas e me fazendo passar por "Dóris dos mentalmente desajustados". Como neste dia:

Fim de domingo, eu ia embora de Tatuí com a cabeça cheia de ressaca, querendo chegar em São Paulo antes de anoitecer. Nas mãos, uma revistinha de palavras cruzadas, nos ouvidos, começava a encaixar meus foninhos de walkman...
- Ô dona!
Olhei pro lado assustada. Era um mocinho, meio caipira, sem alguns dentes e olhar perturbado.
- Oi...
- Oooocê vai pra São Paulo? Eu queria tanto ir pra lá, mas minha mãe fala que eu vou me perder.
- Vou sim. É bem grande lá, sabia? - eu estava pacienciosa nesse dia, mas só um pouco.
- Óia. Sabia que eu perdi esse dente numa briga? Meu pai bate ni mim. - O mocinho estava começando a falar coisas a mais. Se a mãe dele estivesse perto, com certeza lhe daria um safanão e disfarçaria. Mas, como ele estava sozinho, desembestou a falar. - As pessoa me martrata lá onde eu moro, sabe? Meus irmão fala tudo que eu sô bixa e senta pialo na minha orêia. E meu avô...
Dei um sorrisinho de "ok, já ouvi o bastante, sim?" e terminei de colocar os fones no ouvido. Imaginei que ele iria se tocar e me deixar em paz. Eu realmente não queria saber das barbaridades que faziam com ele, tampouco chegar no âmbito das calças abaixadas. Firmei a vista no horizonte e vez ou outra cantava alto para deixar bem claro que o assunto estava encerrado.
Depois de uns cinco minutos em silêncio, diminuí o volume do rádio e ouvi um resmunguinho do meu lado. "Pfff, esse cara já deve estar me contando de quando foi empalado". Foi então que eu ouvi o motivo do lamento:
- Ninguém cunversa cumigo, só faz me tratá marrr. - chorava o pobrezinho.
Meu coração virou geleca. Olha só o que eu tinha feito com o coitado do louquinho que só quis desabafar comigo. Ele limpava as lágrimas e eu não tinha coragem de sair da minha posição de disfarce. Esperei que ele saísse, e enquanto isso, me puni de todas as formas. "Imbecil, custava ser boazinha?". Desde então, tenho praticado o torturante exercício de ouvir desconhecidos e suas mazelas no ônibus, mercadinho, elevador. Não é lá aquela diversão, mas, não custa, né?

Bia Bonduki @ 10:25 AM

terça-feira, junho 01, 2004

Os melhores do mundo *

Depois da minha "trilogia conceitual sobre quadrinhos", vou tentar agitar esta bagaça. E nada mais apelativo do que o que eu vou fazer agora: uma lista. Antes, explico-me: diferentemente da maioria das listas que se encontra por aí, a relação abaixo não pretende ser um ranking. A idéia é ser um guia geral com 10 recomendações que, a meu ver, abrangem uma boa cota de diversidade e qualidade dentro do universo da arte seqüencial. Então vamos lá.

1. Sin City - Roteiro e arte de Frank Miller, que é um dos maiores nomes dos quadrinhos norte-americanos. Sin City é a sua criação mais pessoal: trata-se de uma cidade fictícia que serve de palco para dezenas de histórias policiais, com personagens noir e de vida efêmera. Violência, depravação, corrupção e submundo, tudo em preto e branco (jogo de luz e sombras perfeito) com narrativa explícita e seca de Miller. A revista é editada nos EUA pela Dark Horse e já saiu no Brasil em várias compilações, pelas editoras Globo e Pandora. Meu arco preferido é o primeiro, Cidade do Pecado, com o personagem Marv.

2. Livros da Magia - Conceito criado por Neil Gaiman, inglês que se consagrou pela série Sandman, de estilo predominantemente fantasioso e onírico. Livros da Magia surgiu como uma minissérie em quatro partes e depois virou uma revista mensal. Recomendo a minissérie, que inicia toda a trajetória de Tim Hunter, garoto que é destinado a se tornar o maior mago do mundo. Os fãs acusam J.K. Rowling de ter chupado a idéia para criar Harry Potter, mas o próprio Gaiman não dá muita bola pra isso. A minissérie foi lançada pela DC em 1991, foi publicada no Brasil pela Abril e recentemente relançada pela Opera Graphica. Destaque para a excepcional arte de John Bolton, Scott Hampton, Charles Vess e Paul Johnson (cada um ilustrou um capítulo).

3. Fritz The Cat - Robert Crumb criou, escreveu, desenhou e matou Fritz ao longo dos anos 60 e 70. Isso mesmo, o cara foi responsável pelo sucesso do gato que destruiu todos os alicerces do american way of life - incluindo aí muitos dos clichês comportados da Disney - e que fez de seu criador uma lenda viva da contracultura. Mas quando ele viu que Fritz estava ficando famoso demais, Crumb ficou tão puto que o matou sem piedade, na sua última história. A Editora Conrad lançou no Brasil, há um ano e meio, uma antologia de Fritz que é facilmente comprável nas livrarias e Internet.

4. Batman - Cavaleiro das Trevas - Essa obra é tipo uma "Sgt. Peppers dos quadrinhos": é referência em tudo que é análise sobre o meio e figura fácil nas listas de "mais mais". Por isso a indicação aqui é mais no sentido "tenha-uma-opinião-formada-sobre-isso". É a obra mais comentada de Frank Miller (ele de novo), que fez a história e o traço. Representou uma guinada na trajetória de Batman, trouxe novos rumos pro segmento de super-heróis, deu aos quadrinhos status de arte séria, bla bla bla... enfim, leiam. A original foi pela DC, e a Abril já lançou e relançou no Brasil em várias oportunidades. Ah, sim... é uma história que se passa num futuro alternativo, onde um Batman de 60 anos volta a botar ordem numa Gotham City fascista.

5. A Garagem Hermética - A Europa dando as caras por aqui. É considerada uma das obras mais bizarras desta arte, com loucura por cima de loucura. Ficção científica, devaneios, psicodelia, visual absurdamente híbrido. Praticamente não tem um roteiro lógico e vale mais pelos desenhos espetaculares do francês Jean Giraud, mais conhecido pelo apelido de Moebius. Não lembro a editora original (acho que é a Humanoids) e foi lançada no Brasil pela Editora Globo em 1992.

6. Do Inferno - Antes de qualquer coisa, uma constatação: Alan Moore é foda. Pronto, podemos continuar. Aqui o inglês barbudo fez um de seus melhores roteiros, o que não é pouco pro cara que fez Watchmen, V de Vingança, A Piada Mortal e Liga Extraordinária. Versão de Moore para o caso Jack, o Estripador, com talvez a pesquisa bibiográfica mais completa que eu já vi numa HQ. Mais de 400 páginas de morbidez, com a arte P&B ultrasinistra do também britânico Eddie Campbell. Fenomenal é pouco. A editora original é a Kitchen Sink; a brasileira é a Via Lettera.

7. Gen Pés Descalços - Lançada no Brasil pela Editora Conrad, essa série do japonês Keiji Nakazawa é o relato autobiográfico mais poderoso e sensível que eu já tive o prazer de ler. Nakazawa narra o horror da bomba de Hiroshima pelos seus próprios olhos, pois assim como o personagem Gen, o artista esteve lá, perdeu alguns de seus familiares na tragédia e passou fome antes e depois da guerra. Algumas passagens são cruéis demais e não recomendáveis para quem não suporta o mundo cão. A série original foi lançada no Japão na década de 70, mas não sei a editora.

8. Um Contrato Com Deus - Esse aqui também é foda: Will Eisner. Tão foda que é uma das maiores influências de Frank Miller e seu nome batizou o mais importante prêmio de HQs, o Eisner Award. Um Contrato Com Deus foi o primeiro experimento do roteirista e desenhista norte-americano com um formato que ele chamou de graphic novel, que consiste em transformar HQs em livros para leitores "sérios". Um Contrato... são quatro contos, baseados na vivência de Eisner em um cortiço pobre de Nova York. Histórias reais de personagens verídicos e bem humanos. Saiu no Brasil pela Editora Brasiliense, já faz um tempo.

9. O Girassol e a Lua - É a única indicação brasileira da lista. Entrou porque é um trabalho coeso e inteligente dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. Publicada originalmente em um fanzine, a Via Lettera relançou como álbum. História noir sobre um cara que parte em uma busca desesperada pela garota que ama, que possivelmente foi seqüestrada. A narrativa flui fácil, te dá vontade de acompanhar cada etapa da trama até tudo acabar. Desenhos bonitos, também.

10. Obras Completas de Carl Barks - Apesar de eu não sugerir uma ordem de leitura pros álbuns acima, recomendo que esta aqui seja lida depois dos outros nove. Explico: por ser uma compilação infanto-juvenil de histórias Disney, seria interessante você passar pela sabatina de diversos autores diferentes para só então ter uma visão mais universal sobre quadrinhos e entender o porquê de Carl Barks ser considerado um mestre do traço e roteiros. A Abril lançou quatro álbuns há pouco tempo (ainda está nas bancas) e pretende lançar todo o material de Barks nos próximos três anos.

Dever de casa lançado, mãos à obra!

* Não sei se alguém notou, mas desde que a coluna de HQ estreou no blog, eu tento usar frases e termos conhecidos nos quadrinhos como títulos dos posts. O nome da trilogia anterior foi inspirado no bordão do Homem-Aranha. Já este aqui é uma citação a Super-Homem e Batman, que trabalham em dupla na revista com este nome (que na verdade, é uma nova versão da revista homônima dos anos 40).

MPadrão @ 4:50 PM

sexta-feira, maio 28, 2004

A mão à palmatória

...E a claque decidiu a Palma de Ouro de Cannes. Farenheit 9/11, ganhou o prêmio máximo do Festival, além de ser também o detentor do recorde de filme mais aplaudido em todos os 57 anos de mostra competitiva cinematográfica na Riviera Francesa (como dito semana passada nesta coluna). Menos sorte teve Diários de Motocicleta – que alguns críticos, como Roger Ebert, do Chicago Sun Times insistem em chamar de brasileiro: nenhum prêmio do júri oficial.

Felizmente, a discussão não ficou em torno de quantas-palmas-valem-uma-palma. O talk of the town em Cannes foi, sim, a Palma de Ouro para o filme de Michael Moore. Mas questionava-se não o aplauso, e sim o fato de o júri ter sido supostamente influenciado pela grande dose de política do filme, não ter prestado muita atenção em aspectos artísticos e, o mais grave, ter premiado um filme que utiliza imagens de televisão! A polêmica foi tanta que o júri, pela primeira vez na história de Cannes, promoveu uma coletiva de imprensa logo após o anúncio dos vencedores, para explicar por que Farenheit 9/11 mereceu levar a maior honraria do Festival.

Ao longo das duas semanas, os jornalistas que cobriram o evento falaram tanto, mas TANTO do documentário, que até dúvidas sobre se o filme poderia levar o carimbo de "cinema" surgiram. Kleber Mendonça Filho, do Jornal do Commercio e do CinemaScópio, chama a obra de Michael Moore de "cinejornal", num tom um tanto pejorativo. Ele explica que é porque 90% das imagens utilizadas são advindas de telejornais, portanto o filme não poderia ser considerado CINEMA (conclusão tirada por mim ao terminar de ler o texto de KMF; alguém me corrija se estiver errado).

Acho complicada essa questão. Definitivamente, não existe uma regra que limite o que é e o que não é cinema. Pessoalmente, acho que o que define cinema é a edição, a montagem, a forma como aquelas imagens são mostradas, não importa de onde elas venham. É aí que o narrador mostra a que veio, é por meio da edição que o cineasta conta bem ou mal a sua história. Mesmo filmes como Festim Diabólico (cujos oito cortes não são perceptíveis) e Arca Russa (todo filmado em plano seqüência) trazem a edição, ou melhor, a falta dela, como ponto alto. Mesmo ausente, a montagem está lá, planejada anteriormente quadro a quadro.

É esquisito tratar o filme de Moore como algo "menor" por ele ter usado imagens previamente gravadas e exibidas pela televisão. Ora, não lembro de ter visto ninguém reclamando de Na Captura dos Friedmans ou Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos por terem usado imagens de home movies ou de arquivo televisivo. Isso sem falar no excelente Ônibus 174, filme que todos já tinham visto em suas casas, no Plantão da Globo e, ao mesmo tempo, NÃO tinham visto. A forma com que os diretores José Padilha e Felipe Lacerda montaram as várias horas de imagens "ao vivo" fez com que toda a tensão fosse revivida, com que a problemática mostrada fosse repensada, mesmo com o início, o meio e, principalmente, o fim sendo de conhecimento de todos. E, se não me falha a memória, nenhum crítico reclamou - muito pelo contrário.

Michael Moore é um cineasta longe, muito longe da perfeição. Seus documentários deveriam trazer sempre várias aspas, pois Moore menos documenta que induz o espectador a pensar da forma que ele acha correta. O cara manipula descaradamente não só as imagens (um dos diálogos dele com Charlton Heston em Tiros em Columbine foi enxertado sem a presença do ator) quanto os personagens (toda a seqüência do Wallmart, também em Columbine) dos seus documentários, algo que causaria calafrios em muitos documentaristas. Não é à toa que Tiros em Columbine ganhou, no ano passado, o prêmio de Melhor Roteiro da Associação de Roteiristas dos EUA – troféu que, até então, só tinha sido entregue a filmes de ficção. Talvez os filmes de Moore estejam bem mais próximos da ficção que da realidade. Mas, ao que parece, ele não está nem aí para os rótulos. E talvez esse seja o problema dos jornalistas em polvorosa no Festival de Cannes: tentar classificar o tal do Farenheit 9/11. Talvez Tarantino e sua trupe tenham enxergado além e decidido premiar algo inclassificável, mas com muito valor artístico.

P.S.: A atriz inglesa Tilda Swinton, membro do time de jurados de Cannes nesta edição, revelou que quase foi dado um prêmio de Melhor Contribuição Humorística para George W. Bush.

P.S.2: Quero deixar claro que ainda não assisti ao filme em questão (que, aliás, estréia nos em Julho no Brasil). Quis discutir o teor das críticas contra o filme – quase todas baseadas no fato de o filme ser ou não cinema, se é justo ou não um filme que usa imagens de TV levar um dos prêmios mais prestigiados do cinema. Quanto à qualidade artística, é esperar para ver se a opinião dos jurados coincide com a minha.

P.S.3: Acabo de sentir que não consegui colocar nessas linhas a minha linha de pensamento. Reescrevi, mas mesmo assim na minha cabeça soa todo muito mais coerente. É torcer pra que vocês esqueçam a (falta de) qualidade jornalística/literária do texto e comentem só as idéias contidas nele.


Fábio Leal @ 9:03 PM

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